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Quando se aborda a história da Primeira República, é preciso considerar que, neste tempo curto (1910-1926), há uma imensa distância entre os ideais e a sua incipiente concretização. Os primeiros inspiravam-se em convicções democráticas, visando a modernização da sociedade, nomeadamente através da generalização do ensino, do incremento económico e da afirmação de Portugal no quadro de ambiciosa política colonial. Quanto aos níveis insuficientes da transposição dos princípios para as políticas, há que ter em conta, internamente, o impacto negativo das divisões partidárias e, externamente, a Primeira Guerra Mundial, causa de sofrimento, empobrecimento e de graves confrontos. Este contexto de instabilidade foi inibidor de consistentes políticas sectoriais.

No que se relaciona com o desenvolvimento urbano, quase nada se pode assacar à Primeira República como concretização de estratégias inovadoras. No entanto, se nos deslocarmos do estrito quadro determinado pelos acontecimentos políticos para uma duração histórica mais ampla, abarcando o período final do constitucionalismo monárquico, sensivelmente desde a década de 1870 (marcada, por exemplo, pelo brilhantismo da “Geração de 70”) então teremos uma situação muito diversa, caracterizada por níveis densíssimos de inovação. Quando a República chegou, em 1910, Lisboa e Porto estavam já dotadas dos equipamentos básicos de renovação urbana que, por volta de 1900, configuravam uma verdadeira revolução. Os seus obreiros pertencem a uma elite social e cultural, com expressão política, que gerou também as convicções e a organização republicana. Alguns eram já convictamente republicanos, outros tornar-se-ão depois, outros nunca deixaram de ser monárquicos. Como sempre acontece, quando não se reduz a história à questão política, a realidade é complexa e multidireccional. No caso das políticas urbanas, pode dizer-se, aliás como em muitos outros domínios, que as revoluções, que ali ocorreram, antecederam a Revolução. Não se trata de uma visão determinista da história nem a indução de uma causalidade unidireccional, mas a confirmação do que todas as épocas revolucionárias verificam: a factologia política sobrepõe-se, por esquematização simplista mas cómoda, às transformações tecnológicas e culturais que ocorrem sempre mais cedo.

Para evocar alguns dos elos fundamentais dessa revolução prévia, centrar-me-ei no caso de Lisboa que especialmente conheço. Ela ocorreu em extraordinário contexto europeu, marcado por sucessivos saltos tecnológicos e industriais que permitiram traçar as infra-estruturas do urbanismo moderno, no exacto tempo em que, em Barcelona, através de Ildefons Cerdà, nascia o urbanismo como disciplina, reivindicando uma nova cientificidade1. Os dispositivos essenciais relacionam-se com a renovação e extensibilidade de um conjunto de redes, abarcando os esgotos, a água e, em cima de 1900, a electricidade e o telefone. A questão da higienização, meta inalcançável na cidade antiga, tornava-se agora, pelo menos na ordem dos princípios, uma espécie de sinónimo optimista da condição do citadino. Sobre uma cidade subterrânea cada vez mais complexa, outra rede moderna se estabelecia: a dos transportes públicos que, antes do automóvel, foi eminentemente a de um eficaz sistema de eléctricos. O quadro económico e financeiro do capitalismo fino oitocentista, fortemente competitivo e expansionista, explica que, se o caminho-de-ferro chegou a Portugal na década de 1860 (trinta anos mais tarde do que na maioria dos países europeus), os eléctricos chegaram poucos anos depois e o automóvel praticamente ao mesmo tempo. 

A cidade mais limpa, mais rápida, mais eficaz — adjectivações que a época entendia como imagens caracterizadoras da modernidade — era eminentemente a cidade burguesa. E esta representava-se, não tanto nos corpos estreitos e fraccionados dos bairros antigos, onde a higienização falece até muito tarde, mas nas recentes extensões urbanas que, na maioria das capitais europeias, seguiam, com maior ou menor proficiência, o modelo internacionalizado do Paris do Segundo Império, delineado sob o controlo programático do Barão de Haussmann. Tratava--se de um urbanismo ortogonal, de grandes avenidas tendencialmente dispostas em xadrez, cirurgicamente rompido por diagonais operativas. Era nestes novos bairros que a rede das infra-estruturas urbanas mais facilmente se instalava, dispostas sob e sobre os corpos longilíneos das avenidas a que toda a Europa chamou boulevards.

Em Portugal, o exemplo mais próximo destes modelos internacionais, foi promovido em Lisboa pela equipa de Frederico Ressano Garcia, formado, com brilhantismo, na parisiense École Nationale des Ponts et Chaussées2. Tendo sido engenheiro chefe da Câmara Municipal entre 1874 e 1909, a ele se deve uma profunda reestruturação dos serviços técnicos de engenharia e arquitectura, postos ao serviço de um projecto cuja ambição retomava a dos engenheiros militares da reconstrução da capital depois do terramoto de 1755. A fase mais visível desta nova cidade foram as chamadas Avenidas Novas, que incluem a Avenida da Liberdade e os bairros adjacentes, a Praça do Marquês de Pombal e o Parque Eduardo VII e, a partir daí, para nordeste, a Avenida Fontes Pereira de Melo, a Praça do Saldanha e o conjunto do xadrez centralizado na Avenida da República que, até 1910, se designava Avenida Ressano Garcia. Com projecto aprovado em 1889, as principais infra-estruturas estavam concluídas em 1900 quando a edificação se inicia do Saldanha para Norte, quase coincidindo com a inauguração, em 1901, das primeiras linhas de carros eléctricos3.

A nova Lisboa dispunha-se num amplo planalto que fora subúrbio de quintas, percorrido por “caminhos de pé posto” que conduziam aos lugares operativos de onde vinham os abastecimentos frescos e a mão-de-obra de trabalho doméstico. Embora a edificação tenha decorrido a bom ritmo, foi lenta a afirmação das “Avenidas Novas” como bairro residencial. Basta pensar, por exemplo, que, até à década de 1930, não havia ali igreja própria, a não ser o velho templo seiscentista de São Sebastião da Pedreira, que marginava uma das antigas vias de saída da cidade, em direcção a Palhavã e Benfica. Inaugurada em 1938 (projecto de 1934), a nova Igreja de Nossa Senhora de Fátima, desenhada por Pardal Monteiro, sob encomenda directa do então Cardeal Patriarca de Lisboa, marca o período final de edificação dos últimos troços das Avenidas Novas, quando, sob direcção de Duarte Pacheco, estava a executar-se a extensão oriental, para lá da Avenida Almirante Reis.

A acção da equipa camarária de Ressano Garcia não se limitou às Avenidas Novas. Nessas últimas décadas do século XIX, prolongou-se a Avenida 24 de Julho de Santos a Alcântara, abriu-se a Avenida D. Carlos I, articulando Santos com São Bento, edificaram-se os bairros da Estefânia e Campo de Ourique (que devem ser considerados os primeiros protótipos das Avenidas Novas) e, a norte da Rua da Palma, delineou-se a Avenida dos Anjos que se chamaria depois D. Amélia e, com a República, Almirante Reis. À sua ilharga, articulavam-se, para ocidente, a Estefânia e as Picoas (onde o arquitecto Miguel Ventura Terra projectou, em 1906, o Liceu Camões) e, para oriente, um conjunto de bairros construídos por iniciativa de companhias privadas, propriedade dos chamados “patos-bravos”, construtores civis, inicialmente sem formação técnica especializada que dominaram a edificação urbana em Lisboa, sobretudo nos anos da Grande Guerra.

Lisboa mais do que duplicava de área, resultado do pragmatismo e da qualidade da excepcional equipa de Ressano Garcia, a que pertenciam o arquitecto José Luís Monteiro (que foi também o mais importante professor de arquitectura da Escola de Belas-Artes de Lisboa) e o engenheiro António Maria Avelar (que delineou os projectos de arborização das placas centrais e dos passeios das principais avenidas). Esta expansão tem dois aspectos interessantes: por um lado, deixou intacta a cidade antiga que sobrevivera ao Terramoto, desenvolvendo-se, como que naturalmente, a partir do corpo já moderno da Lisboa pombalina; por outro, quebrou o multissecular sentido de crescimento de oriente para ocidente, ao longo do Tejo, substituindo-o pela penetração para norte, desfuncionalizando o rio como “caminho urbano” (na frente do centro da cidade, essa função passou para a Avenida 24 de Julho, delineada, sobre potente aterro, nos anos de 1860). Esta lógica urbanística conduziu a mesma equipa a propor, em 1903, um novo plano de extensão da cidade, incluindo o delineamento de um conjunto de vias de articulação com território envolvente. A sua análise revela um conjunto pragmático de intenções que só seriam retomadas nos anos de 1930, quando Lisboa recuperou uma estratégia, sob o mando autoritário de Duarte Pacheco, no contexto da época mais dinâmica do Estado Novo.

Entretanto, a cidade burguesa não soube resolver a questão do alojamento operário. Sendo evidente que a lentidão e estreiteza do processo industrial português explicam que ela nunca tenha revestido a gravidade de outras cidades, mesmo assim havia indícios preocupantes na sobreocupação dos bairros mais antigos e na insuficiência das “vilas operárias”, promovidas em grande parte pelos patrões ou pelo poder considerável dos construtores civis. Neste domínio, a legislação da Primeira República procurou responder a crescentes reivindicações. Cite-se, por exemplo, em 1919, a celebração de um empréstimo ao Governo pela Caixa Geral de Depósitos destinado “à construção de cinco bairros operários”, dois em Lisboa, dois no Porto e um na Covilhã”4. No caso de Lisboa, só o Bairro do Arco do Cego teve início, sobre projecto dos arquitectos Edmundo Tavares e Frederico Machado. As obras arrastar-se-ão, de modo que a sua conclusão e inauguração (1935) só ocorreram durante o Estado Novo. Entretanto, ali acontecera o mesmo que, na década de 1880, se passara com o Bairro do Calvário em Alcântara: pensados para alojamento operário (com casas unifamiliares no Arco do Cego e grandes blocos de habitação colectiva em Alcântara), tiveram, desde o início, outra ocupação social, recrutada numa pequena burguesia de serviços, e também de modestos comerciantes e industriais, os grupos que mais apoiaram e beneficiaram com a Primeira República.

Apesar da fragilidade das realizações, não faltou então a Lisboa o desejo utópico de uma maior modernidade. Na senda de ousadas propostas formuladas pelo engenheiro Miguel Correia Pais, o arquitecto Ventura Terra (um dos principais autores da nova cidade, incluindo prédios, casas unifamiliares, um banco, liceus, a Maternidade, além da notável obra de modernização da Assembleia da República) pretendeu alargar a Rua do Arsenal, dotando-a com arcadas cosmopolitas; defendendo a importância da frente fluvial da cidade, apresentou a sua mais ousada proposta que propunha a progressiva ocupação da margem direita do Tejo, “onde, num futuro embora longínquo deve desaparecer tudo o que possa destruir a sua beleza, transformando-a numa verdadeira cidade moderna e anexando-lhe as encostas da outra banda”5. Como corolário desta utopia, voltou a trazer para a reflexão a imperiosidade da construção de uma Ponte6; para Ventura Terra, esta deveria ser “uma ponte avenida monumental” que, arrancando da “actual Praça do Rei de Janeiro” (Príncipe Real) se ligasse “ao Alto de Santa Catarina por meio de uma avenida tendente a transformar e melhorar o chamado Bairro Alto”, terminando “no Forte de Almada”7

Os tempos não foram favoráveis à visão moderna de Ventura Terra que, nesses anos elaborou, com grande qualidade, o plano de urbanização do Funchal, neste caso conseguindo marcar todo o futuro desenvolvimento da cidade8. Nos arredores da capital, o desejo de ampliação teve, no entanto, uma notável concretização: a invenção do Estoril, impulsionada por Fausto de Figueiredo, personalidade relevante que, vindo da Primeira República, se afirmaria durante o Estado Novo. Em 1914, apresentou um ostensivo projecto, delineado pelo arquitecto Martinet, no gosto ecléctico desses anos que inventaram e consagram os primeiros grandes centros do turismo internacional europeu9. Paradoxalmente, a nacionalista Primeira República abria-se a um cosmopolitismo que ideologicamente lhe era estranho, aliás como aconteceria com o Estado Novo. Para ambos os regimes, o Estoril sonhado por Fausto Figueiredo era uma interrupção tolerada num discurso urbanístico em que o principal sinal de modernidade, na maioria das cidades portugueses, eram as “avenidas da estação” que nestes anos foram delineadas, articulando os velhos e pequeníssimos burgos com a única rede de circulação nacional: o caminho-de-ferro.

 

 

 

[1] V. Françoise Choay. La Règle et le Modèle: sur la théorie de l’architecture et de l’urbanisme. Paris : Seuil, 1996. 1ª ed. 1980.

[2] V. Raquel Henriques da Silva. As Avenidas Novas de Lisboa, 1900-1930. Lisboa : [s.n.], 1985. Dissertação de Mestrado apresentada na FCSH/UNL (texto policopiado); LISBOA de Frederico Ressano Garcia, 1874-1909. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian; Câmara Municipal de Lisboa, 1989. Catálogo de exposição comissariada por Raquel Henriques da Silva.

[3] V. LISBOA em movimento, 1850-1920. Lisboa : Livros Horizonte, 1994. Catálogo de exposição comissariada por José Manuel Fernandes e Maria de Lurdes Janeiro.

[4] Júlia Ferreira. O Bairro do Arco do cego. Análise Social. Vol. 29, nº 127 (1994). No mesmo volume, vide Fátima Loureiro Dias. Os bairros sociais no espaço urbano do Porto.

[5] Sessão de 3 de Dezembro de 1908 e 8 de Junho de 1911. in Actas das Sessões da Câmara Municipal de Lisboa. Lisboa : CML, [s. d.]. Vide análise mais detalhada destes projectos em Raquel Henriques da Silva. Ventura Terra em contexto. in Miguel Ventura Terra: a arquitectura como projecto de vida. Esposende : Câmara Municipal de Esposende, 2006. Catálogo de exposição coordenado por Ana Isabel Ribeiro.

[6] V. para síntese sobre este tema, Teresa Rodrigues. Ponte sobre o Tejo. in Francisco Santana e Eduardo Sucena, (dir.) Dicionário da História de Lisboa.  Lisboa : Carlos Quintas & Associados, 1994.

[7] V. nota 5, idem, ibidem.

[8] V. José Manuel Fernandes. Da Sé ao Casino: o eixo histórico de crescimento do Funchal. Monumentos: Revista Semestral de Edifícios e Monumentos. Nº 19 (1994).

[9] V. Raquel Henriques da Silva. Estoril, Estação Marítima, Climática, Thermal e Sportiva: as etapas de um projecto: 1914-1932. Arquivo de Cascais: Boletim Cultural do Município. Nº 10 (1991).


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